July 20, 2023

Eletricidade: anatomia de um desvio colossal - Expresso



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Eletricidade: anatomia de um desvio colossal


Miguel Prado

Bom dia!


Há mais de uma década, quando Portugal estava no início de uma austera intervenção da troika, correram rios de tinta em torno do "desvio colossal" das contas públicas. Como em 2011 observava o então ministro das Finanças, Vítor Gaspar, estava em causa o trabalho "colossal" com que o Governo se confrontava para cumprir metas orçamentais perante o desvio detetado. Em 2011 não era só na contabilidade do Estado que havia um sinal vermelho. O sistema elétrico suscitava igualmente preocupações, com uma montanha de dívida tarifária pela frente, num setor acusado de viver protegido por rendas excessivas. Uma dúzia de anos depois, o tema da dívida tarifária está praticamente resolvido, mas persistem desafios na gestão do mercado. E um deles é o desvio, também ele colossal, entre as previsões que sustentam as tarifas reguladas de eletricidade e os preços realmente verificados.



É um tema regulatório, eminentemente técnico, mas que, mais cedo ou mais tarde, acaba por nos tocar a todos enquanto consumidores de eletricidade. Uma boa parte da fatura que nos chega a casa todos os meses depende das contas feitas todos os anos pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), que em outubro apresenta uma proposta tarifária, e em dezembro aprova a sua versão final, para vigorar a partir de janeiro. Para os 950 mil clientes que estão no mercado regulado, a sua fatura é integralmente dependente dos termos aprovados pela ERSE. Para os mais de 5 milhões de famílias que estão no mercado liberalizado, uma parte do que pagam depende do comercializador e da forma como este se aprovisiona de energia, mas outra parcela depende das tarifas de acesso à rede estipuladas pela ERSE.


Há dias, a ERSE anunciou uma invulgar proposta de atualização intercalar das tarifas de acesso, a vigorar a partir de 1 de julho. E a razão, de um modo resumido, é que o ano 2023 está a apresentar uma realidade de preços de energia bem diferente daquela que o regulador assumiu no final de 2022, quando aprovou as tarifas para este ano. É uma diferença de mais de 2 mil milhões de euros (que detalhamos mais abaixo). Mas vale a pena olharmos para o assunto com mais alguma profundidade, para entendermos como são construídos os preços que pagamos pela eletricidade.


Na eletricidade a fatura de cada família tem uma componente fixa (pela potência contratada) e outra variável (pela energia consumida). O que pagamos tem de cobrir o custo da produção de eletricidade, o seu transporte e distribuição até às nossas casas, custos de gestão da rede e as margens de lucro das empresas que atuam nesta cadeia. Se na comercialização as margens são livremente definidas por cada operador (exceto o comercializador de último recurso, como a SU Eletricidade, cuja margem é fixada pela ERSE), no transporte e distribuição os custos são regulados (é a ERSE que define quanto a REN e a E-Redes, em Portugal Continental, têm direito a receber). Na produção é um pouco mais complexo: aí convivem produtores em regime geral, que vendem diariamente a sua energia a preços variáveis em função da oferta e da procura, mas também produtores do regime especial (a maior parte dos quais com a garantia de venda da sua eletricidade a uma tarifa pré-definida, válida por vários anos).


Sucede que todos os anos há uma carteira de clientes regulados (como os da SU Eletricidade) que vai aumentando e diminuindo, da mesma forma que a produção do regime especial também vai oscilando (consoante haja mais ou menos geração renovável coberta por este regime). Cabe à ERSE distribuir alguns destes custos do sistema pelos consumidores de eletricidade nos vários níveis de tensão da rede elétrica (desde os que servem diretamente as indústrias aos que servem as famílias), mas o exercício é complexo. O regulador tem de fazer para o ano seguinte múltiplas projeções: o volume esperado da procura de eletricidade, o volume esperado de produção no regime especial (que inclui parques eólicos, mini-hídricas, algumas centrais solares mais antigas, cogerações, entre outros produtores), e, entre outras variáveis, a evolução esperada do preço grossista da eletricidade.


Um dos elementos cruciais no exercício de preparação das tarifas de eletricidade é este último. A ERSE precisa de projetar um preço de mercado de eletricidade para o ano seguinte, de forma a saber qual o diferencial entre o mercado e o custo da produção do regime especial. E precisa de o fazer porque a regulada SU Eletricidade tem a incumbência de adquirir toda a eletricidade do regime especial e a colocar no mercado ibérico; se o preço médio garantido aos produtores do regime especial for de 100 euros por MWh e o preço de mercado for de 50 euros, a SU incorre num sobrecusto de 50 euros por MWh, que terá de ser recuperado nas tarifas suportadas por todos os consumidores de eletricidade; se o preço de mercado for de 200, a SU obtém um ganho de 100 euros por MWh, que terá de ser devolvido a esses mesmos consumidores.


Desde 2020, com a pandemia, que os mercados de energia entraram numa enorme volatilidade. Primeiro, a queda do consumo fez afundar os preços, dos combustíveis à eletricidade. Em 2021, a recuperação da procura fê-los disparar. Em 2022 a guerra na Ucrânia acentuou a volatilidade. E neste início de 2023 o mundo percebeu que a Europa resolveu bem o desafio de curto prazo que tinha no aprovisionamento de gás: o preço do combustível caiu de forma acentuada, e tem permanecido sem grandes oscilações nos últimos meses. No entanto, o mercado grossista de eletricidade na Península Ibérica continua a ser um carrossel, com uma enorme amplitude de preços da noite para o dia.


É neste cenário que aquilo que já era um quebra-cabeças na vida de um regulador (fazer múltiplas projeções de preços e volumes para o ano seguinte) se transformou numa missão virtualmente impossível (não falhar muito nessas projeções). Vamos aos números.


Na sua proposta de tarifas para 2023 a ERSE havia inicialmente estimado, em outubro de 2022, que ao longo deste ano o preço médio da eletricidade no mercado grossista rondaria os 262 euros por megawatt hora (MWh). Em dezembro, na versão final dos tarifários, o preço de referência já tinha baixado para 223 euros por MWh. Era, ainda assim, um valor histórico: nunca antes a ERSE havia assumido para o ano seguinte um custo tão alto de eletricidade no mercado grossista.


Esta projeção do regulador acarretava riscos e benefícios. O benefício principal era que, havendo um enorme diferencial entre o valor de mercado (estimado) da eletricidade e os preços garantidos ao regime especial, esse fosso criava um substancial ganho tarifário (em lugar do sobrecusto que tradicionalmente existia), que resultaria em valores negativos nas tarifas de acesso à rede (TAR). Ou seja, para 2023, a ERSE aprovou TAR negativas: os comercializadores deveriam, nas suas ofertas comerciais, descontar esse valor negativo das redes aos seus custos com a aquisição da energia no mercado. Mas a projeção de 223 euros de preço de mercado assumida pela ERSE implicava também um risco elevado: se o custo médio da eletricidade no mercado ibérico (Mibel) fosse afinal muito inferior, então as tarifas para 2023 teriam um desvio relevante, que mais tarde teria de ser repercutido nos consumidores. E foi o que aconteceu.


Nos primeiros quatro meses do ano o preço médio no Mibel rondou os 92 euros por MWh, menos de metade do pressuposto usado pela ERSE para 2023. Embora tenham passado apenas quatro meses, o desvio é o maior alguma vez registado entre os pressupostos da ERSE e o preço grossista. O levantamento que fizemos para os últimos anos mostra que sempre houve desvios, mas não da magnitude daquele a que estamos a assistir em 2023.


O mercado de futuros, operado pelo Omip, sugere algum agravamento de preços no resto do ano: junho está nos 100 euros por MWh, o terceiro trimestre está nos 112 euros e o quarto trimestre nos 131 euros. Mesmo que se confirmem estes patamares de preço no mercado ibérico, o ano em curso sairá bem abaixo da projeção considerada pela ERSE. Conclusão: as tarifas de acesso de que os consumidores de eletricidade estão a beneficiar (porque negativas) foram sobreestimadas. E foi isso que levou agora a ERSE a propor a revisão excepcional a vigorar a partir de julho, com tarifas de acesso menos negativas no segundo semestre do que as que foram aplicadas na primeira metade do ano.


O efeito prático desta alteração extraordinária promovida pela ERSE está ainda por determinar (mas poderá fazer subir os preços finais das ofertas no mercado liberalizado). A ERSE indica que os custos de interesse económico geral (CIEG), que resultam, em grande medida, de decisões políticas, deverão este ano ser afinal negativos em 2,5 mil milhões de euros, e não no valor negativo de 4,6 mil milhões assumido nas tarifas para 2023. É uma diferença substancial, superior a 2 mil milhões de euros (o equivalente a mais de 300 euros por cada um dos 6,4 milhões de pontos de consumo de eletricidade do país).


O comunicado do regulador sobre o assunto não revela qual o novo valor proposto para as tarifas de acesso. Essa tarifa é atualmente de -0,0958 euros por kilowatt hora (kWh) na componente de energia em tarifa simples. Numa análise publicada há dias no seu perfil no Twitter, Gonçalo Aguiar, especialista na área de energia, calculou, com base nos poucos dados avançados pela ERSE, que a nova tarifa de acesso poderia assumir um valor de -0,0176 euros por kWh (uma outra fonte ouvida pelo Expresso aponta igualmente para um valor próximo dos 2 cêntimos negativos por kWh). Isso significará uma redução da ordem dos 7 cêntimos por kWh no desconto da tarifa de acesso.


Como a ERSE anunciou que os preços do mercado regulado não irão mexer, esta revisão retirará parte da vantagem dos tarifários do mercado liberalizado, que hoje são destacadamente mais baratos (em especial os indexados ao mercado grossista). Aos preços de mercado atuais, os tarifários indexados deverão permanecer competitivos nos próximos meses, mas será preciso esperar por julho para verificar que atualizações ocorrem nos tarifários fixos do mercado livre, e como se comparam entre si e face aos preços regulados.


As próximas semanas implicarão também um delicado exercício tarifário do lado do maior comercializador de eletricidade do país. Afinal, o presidente executivo da EDP, Miguel Stilwell de Andrade, prometeu uma descida de preços a partir de julho. "Vamos seguramente baixar os preços no segundo semestre", declarou o gestor em entrevista ao Expresso. Para quanto? "Vai depender das tarifas de acesso, de eventuais alterações que haja", respondeu Stilwell na entrevista publicada a 21 de abril, parecendo adivinhar o que a ERSE anunciaria uma semana depois. Com tarifas de acesso menos negativas do que as que até agora existiam, qual será a magnitude da descida prometida pela EDP Comercial?


O "desvio colossal" que baralhou as contas do regulador da energia, passados que estão pouco mais de quatro meses depois da aprovação das tarifas de 2023, não é uma questão de fácil resolução. A estrutura e o desenho do sistema português de eletricidade continuam a obrigar a trabalhar com previsões. E assim continuará a ser enquanto houver comercialização de último recurso (regulada) a conviver com o mercado liberalizado, produção de regime especial em paralelo com geração sem preços garantidos e outros fatores que ao longo de décadas marcaram presença na complexa arquitetura tarifária da eletricidade. Um puzzle que fica ainda mais difícil depois de em 2023 o sistema elétrico ter beneficiado de uma injeção extraordinária de verbas do Estado, sem que saibamos se no ano seguinte tal se repetirá.


A dívida tarifária, que em 2015 chegou a ultrapassar os 5 mil milhões de euros, parece hoje um tema bem resolvido em Portugal. O nosso sistema elétrico foi acumulando excedentes tarifários nos últimos anos, conseguindo abater a maior parte do fardo da dívida que vinha de trás. Só em 2023 estão a ser amortizados 830 milhões de euros de dívida tarifária, e chegaremos ao fim do ano com um stock de dívida de 879 milhões. Era pelo menos essa a projeção da ERSE em dezembro. Se 2024 repetisse o perfil de amortização deste ano, chegaríamos a 2025 praticamente sem dívida tarifária na eletricidade. Mas o desvio do corrente ano e a volatilidade que vimos enfrentando no mercado introduzem um ponto de interrogação sobre o momento real de extinção da dívida tarifária.


A complexidade de desenhar tarifas e preços persiste. Há no setor elétrico diferentes perspetivas sobre o desenho ideal do mercado. Há quem defenda mais contratos de longo prazo (ao criarem cash flows previsíveis diminuem o risco dos projetos e o seu custo de financiamento, ao mesmo tempo que proporcionam preços estáveis para o consumidor). Há quem prefira exposição total ao mercado, ganhando mais dinheiro nuns dias e menos noutros. Não é preciso ir muito longe para o ilustrar: a EDP tem há anos a maior parte da sua produção de eletricidade coberta por contratos de longo prazo; a Galp tem preferido expor as suas centrais solares ao mercado (e tem-se dado bem, porque os preços grossistas nos últimos dois anos alcançaram máximos históricos).


Nos próximos anos novos produtores entrarão em cena. Uns com maior apetite pelo risco, outros com a necessidade de garantir preços fixos. Da energia solar à eólica no mar, a concorrência será elevada. As baterias poderão também entrar no jogo para tirar partido das horas de preços loucos. Esta semana, a comunidade Future Energy Leaders Portugal e a Associação Portuguesa da Energia (APE) promoveram um debate sobre as perspetivas das eólicas offshore em Portugal. No evento, o professor universitário João Peças Lopes indicou que as eólicas flutuantes poderão vir a conseguir um custo nivelado de energia em torno dos 50 euros por MWh quando esse mercado (o das torres flutuantes) alcançar massa crítica, isto é, quando alcançar uma capacidade de 20 a 30 gigawatts (GW) globalmente. Esse seria um preço competitivo (é metade do preço ibérico dos futuros para 2024), mas para lá chegarmos é preciso que os projetos saiam do papel e a indústria se materialize. Mas mesmo aí estamos no domínio de elevada incerteza das projeções. Teremos sempre de viver com elas. E com desvios. Sejam eles colossais ou residuais.

DESCODIFICANDO:


VPP. Uma "Virtual Power Plant" é um conjunto de recursos energéticos descentralizados que possam ser agregados virtualmente, por meio de um sistema de controlo digital, para fornecer serviços à rede elétrica. Assim, uma VPP poderá juntar uma série de pequenas instalações fotovoltaicas em casas e fábricas, fazer a gestão remota de sistemas de aquecimento e arrefecimento, bem como gerir um conjunto de baterias e uma frota de veículos elétricos, usando as respetivas potências e a sua energia para fornecer serviços à rede em momentos críticos, funcionando como uma alternativa flexível às convencionais centrais elétricas. As receitas associadas à prestação desses serviços são depois partilhadas entre os proprietários dos vários ativos descentralizados.



E VALE A PENA LER:


É sobre VPP o mais recente estudo do Brattle Group, encomendado pela Google, e que é intitulado "Real Reliability: the value of virtual power". O trabalho conclui que seria economicamente vantajoso os Estados Unidos da América apostarem nestas centrais virtuais para garantirem o equilíbrio do seu sistema elétrico. Lembrando que na última década os EUA instalaram mais de 100 gigawatts (GW) de nova capacidade firme (na sua maior parte centrais a gás, mas também baterias) com um investimento de 120 mil milhões de dólares, a análise do Brattle Group estima que a eventual instalação de 60 GW de VPP poderá proporcionar poupanças de 15 a 35 mil milhões de dólares ao longo de uma década face aos custos que teria a construção de centrais a gás e baterias para garantir a segurança e flexibilidade da rede elétrica.



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